Apesar de acometer mais de 1 bilhão de pessoas, segundo análise global publicada no periódico The Lancet, a obesidade ainda carece de uma “identidade” clara — seja nas plataformas de pesquisa, na percepção social ou até mesmo no setor de saúde. Esse contexto tem motivado especialistas a enfatizar a definição de obesidade como uma patologia crônica, e não apenas como um problema que pode desencadear doenças.
Segundo os estudiosos na área, a indefinição dificulta diagnósticos e tratamentos precisos, além de perpetuar estigmas e preconceitos.
Durante o International Congress on Obesity (ICO), realizado em São Paulo de 26 e 29 de junho, a Comissão do Lancet para Definição e Diagnóstico da Obesidade Clínica anunciou que está conduzindo um estudo global focado na criação de uma definição clara para a obesidade — doença frequentemente associada a resultados de escolhas individuais. O anúncio foi feito pelo Dr. Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo. “A forma como a obesidade é definida hoje é muito abrangente, o que não funciona para nossos propósitos atuais“, destacou o médico.
De acordo com o Dr. Ricardo, a falta de uma definição precisa gera dificuldades, como a confusão entre estratégias de prevenção e tratamento, acesso inadequado a tratamentos baseados em evidências e concepções errôneas sobre obesidade e sua reversibilidade, além da pouca compreensão sobre a complexidade metabólica e biológica da patologia. “Toda a sociedade está confortável com o cenário em que vivemos hoje, porque, no imaginário comum, as pessoas são culpadas por terem obesidade. Uma prova disso é a aceitação social das chamadas ‘soluções mágicas’, como as dietas da moda, ou a ideia de que a doença está associada a comer muito e se exercitar pouco”, disse o Dr. Ricardo, enfatizando os danos que esse tipo de percepção pode gerar à saúde mental dos pacientes.
A dificuldade em estabelecer a “identidade” da obesidade, na visão do médico, está relacionada ao fato de a sua definição como fator de risco fala mais alto, mesmo que a obesidade tenha critérios para ser considerada uma doença, como patofisiologia e mecanismos etiológicos bem definidos. Essa contradição é evidente, considerando que outros problemas de saúde, como diabetes e transtorno depressivo, são considerados doenças com base nos mesmos critérios. Isso, segundo o Dr. Ricardo, é uma barreira sustentada não apenas pela sociedade, mas também pelo setor da saúde, já que ainda existem profissionais que não têm clareza sobre a definição da doença.
Além dos estigmas e preconceitos que desconsideram o fato de o metabolismo funcionar de maneira única em cada indivíduo, o resultado desse conflito entre os conceitos de doença e fator de risco é a ausência de uma ciência própria e sintomas estabelecidos. Isso contribui para que os tratamentos disponíveis não sejam voltados para a obesidade em si, mas para a profilaxia de doenças secundárias, como diabetes e hipertensão arterial. Como exemplo, o Dr. Ricardo citou o caso de um paciente com fadiga, gonalgia e osteólise que, mesmo sem conseguir realizar suas atividades diárias, não recebe o acompanhamento necessário. “Se ele tivesse diabetes, poderia ter acesso a tratamento, porque diabetes é uma doença e precisa ser tratada. Mas, como a obesidade não o é, o paciente precisou voltar para casa.”
Em uma tentativa de reverter esse cenário, a pesquisa da comissão do Lancet, cuja divulgação está prevista para este ano, também tem o objetivo de criar critérios claros para o diagnóstico tanto em adultos quanto em crianças e adolescentes. Inspirada por disciplinas médicas que têm critérios diagnósticos bem estabelecidos, como reumatologia e psiquiatria, a pesquisa consolidou 18 critérios para adultos e 14 para a população pediátrica.
Além disso, o estudo redefine os resultados esperados dos tratamentos, define a remissão clínica da obesidade e propõe recomendações claras para prática clínica e políticas de saúde pública. O objetivo final, segundo o Dr. Ricardo, é transformar globalmente o espectro de tratamento da obesidade e ampliar o acesso aos cuidados necessários. “Nosso plano é estabelecer a obesidade como uma doença para que as estratégias de política de saúde, a sociedade em geral e os tratamentos passem a ter um olhar mais cuidadoso para esse problema. Isso, além de tudo, é uma forma de minimizar os danos causados pelo estigma e o preconceito”, concluiu o médico.