O que podemos fazer com as pistas que o Sars-CoV-2 deixa no cérebro?

Data: 10/03/2022 Publicado em: UOL VIVA BEM/UOL/SÃO PAULO

Nos últimos dias saíram estudos mostrando o que pode acontecer com o cérebro após a passagem do Sars-CoV-2. Não é preciso muito raciocínio para apostar que ainda surgirão muitos outros trabalhos nessa linha.

Afinal, está todo mundo esperto. Só em janeiro deste ano, 89 milhões de pessoas ao redor do mundo testaram positivo para covid-19. E já é esperado que uma parte delas passe a reclamar de lapsos de memória, dificuldade para nomear as coisas, sensação de que os pensamentos surgem em câmera lenta e sem a mesma clareza de antes. Sim, esse coronavírus parece nos dar um nó na cabeça.

Cientistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, publicaram esta semana na revista Nature um artigo no qual, tentando explicar esses quadros, comparam imagens de ressonância magnética do cérebro de 401 pessoas antes e depois que tiveram um quadro leve de covid-19. Em resumo, eles notaram que determinadas estruturas cerebrais simplesmente encolheram.

Em outro trabalho, este da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que saiu na Alzheimer’s & Dementia, os pesquisadores fizeram a autópsia de dez pessoas que se queixavam de problemas de memória na covid longa e que, por azar, morreram de outra causa qualquer. No cérebro delas, encontraram lesões parecidas com aquelas que surgem nas fases iniciais do Alzheimer.

Tudo isso é assustador à primeira vista, mas não dá para a gente já sair esquentando a cabeça. Até porque não é assim que ela, a cabeça, funciona. Entendi isso ao ter uma ótima conversa com o neurologista e neuroimunologista Diogo Haddad Santos, coordenador do Núcleo de Memória do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

No final do primeiro ano da pandemia, em 2020, o médico participou de uma grande discussão no Oswaldo Cruz sobre o impacto da covid-19 na memória. Na época, sabia-se uma coisa ou outra e a conclusão otimista foi de que, dali a um ou dois anos —ou seja, agora—, a gente entenderia muito mais sobre a ação do Sars-CoV-2 no sistema nervoso central.

“Queríamos saber o quanto a cognição era afetada, se todas as pessoas infectadas corriam o mesmo risco de perdas cognitivas e, principalmente, se daria para evitá-lo”, diz o neurologista.“Mas, para ser honesto, nesse campo pouca coisa mudou de lá para cá.”

Quando, lá atrás, os cientistas flagraram o Sars-CoV-2 no sistema nervoso central, houve um estardalhaço. De boca aberta —uau!—, recebemos a notícia de que, de alguma maneira ele passava de boa pela barreira hemotoencefálica que cerca o cérebro.

Poderia descrevê-la como uma estrutura que, entre outras características capazes de oferecer proteção, é formada por vasos capilares cujo endotélio, seu revestimento interno, não deixa muita brecha entre uma célula e outra justamente para evitar a passagem de substâncias ou de agentes causadores de doença que, por acaso, circulem pelo sangue.

O fato é que, entre os que entendiam de infecções ou de cérebro, não houve uma grande surpresa. “Outros coronavírus, que vieram antes do da covid-19, atravessavam essa barreira. Não tinha por que o Sars-CoV-2 ser diferente”, informa Diogo Haddad.

Para ele, as pessoas prestaram mais atenção dessa vez por ser uma pandemia, com um enorme número de casos que, amanhã ou depois, podem apresentar problemas de cognição. “Mas essa possibilidade, em si, não é uma novidade”, reforça.

Aliás, a ameaça nem sequer é exclusividade dos coronavírus. Quem atua na área da neurologia cognitiva sabe bem que, por exemplo, depois de uma pneumonia qualquer a pessoa pode sentir um baque nas funções executivas. E a cabeça é até capaz de piorar se essa criatura decide voltar ao trabalho em seguida e a mil por hora.

Claro que há diferença se a atividade profissional do indivíduo inclui tarefas mais simples ou se exige um bocado de atenção, planejamento, criatividade, tomada de decisões, capacidade de cálculo, habilidade para fazer apresentações, gerenciar crises, negociar? —enfim, se emprega mais cognição. Não por nada: “Até porque a pessoa só sente que tem um problema cognitivo quando ele começa a afetar o dia a dia, atrapalhando o desempenho profissional ou seus relacionamentos”, nota o neurologista.

Assim, um professor de física pode ter o mesmíssimo comprometimento de um trabalhador braçal e acabar sentindo mais os lapsos de memória. Nem sempre, porém, é só questão de maior percepção. Pode ser também por forçar na fase de retomada da rotina.

Segundo Diogo Haddad, quando alguém tem uma infecção como a covid-19 e, passada a fase aguda, resolve retomar depressa a agenda agitada, a cabeça pode até piorar. “Ao contrário do que muitos pensam, o cérebro não é inatingível”, explica. “O Sars-CoV-2 tem claramente um neurotropismo, isto é, uma facilidade para se multiplicar nos neurônios. E, depois desse ataque, eles precisam de um tempo para se reorganizarem.”

Ele compara a situação com a de um corredor que, após a convalescência, decide retomar os treinos: “Ele não sai do leito para uma maratona. Primeiro, correrá 1 quilômetro, depois 2 quilômetros e assim por diante”. Nem conseguiria correr mais do que isso no começo. E, se insistisse, talvez passasse mal.

“No entanto, ninguém tem essa noção quando é o cérebro”, observa Haddad. “Como os músculos ou o sistema cardiovascular, ele também precisa se readaptar.” Portanto, desacelerar pode ser recomendável.

Quanto tempo isso leva? Adivinhe a resposta! “Depende”, diz o doutor. “É muito individual, conforme a idade, a reserva cognitiva, se é alguém que faz exercício físico, se dorme bem e como se alimenta”, conta. “E, claro, devemos considerar as atividades do dia a dia”. Reuniões difíceis ou aulas pesadas podem corresponder à maratona da comparação.

Ao contrário do que alguns recomendam —esperar alguns meses na covid longa antes de buscar ajuda— , Diogo Haddad acha que, se você a todo instante precisa reler uma página de livro ou se anda se esquecendo de detalhes do que acertou com colegas, por exemplo, essa percepção não deveria ser negligenciada. “Mas, infelizmente, a tendência de todos é minimizar é atribuir sinais assim à correria”, nota.

Para ele, isso deveria ser comentado com um profissional de saúde — “de preferência um neurologista, um psiquiatra, um geriatra ou um psicólogo, embora até mesmo um clínico geral possa avaliar se é caso de buscar uma ajuda especial”, referindo-se à reabilitação cognitiva. Já ouviu falar? Ela é algo muito mais complexo do que mandar o sujeito resolver uma charada. O que será prescrito vai depender de uma avaliação cuidadosa.

“Não há um exame de imagem ou de sangue capaz de diagnosticar problemas cognitivos”, explica o médico. “Mas, pela avaliação, posso intuir que a área afetada no cérebro está bem ao lado, vamos supor, de outra que tem a ver com habilidades motoras. Portanto, para a reabilitação cognitiva desse paciente, será muito mais efetivo eu indicar exercício físico do que palavras-cruzadas.”

Aqui está um grande valor de mapear os estragos feitos pelo Sars-CoV-2. Se o neurologista conhece as regiões afetadas, será mais fácil planejar o que precisa ser feito para a função cognitiva voltar ou até mesmo prevenir sua derrocada.

Mas sem pânico em relação aos resultados desses estudos até o momento: “O de Oxford checou se todas as pessoas com estruturas cerebrais encolhidas apresentavam problemas de memória na covid longa”, aponta o médico. Em matéria de cognição, várias alterações nas imagens nem sempre se traduzem em problemas.

“No cérebro, tudo funciona na base de redes neurais”, ensina Haddad. Ou seja, caminhos formados por neurônios que se comunicam entre si e que podem se desviar de inúmeras alterações.

A maioria das pessoas que relacionam dificuldades de memória à covid-19 relata que pena para encontrar as palavras corretas e, não raro, chega a trocá-las. Será que áreas cerebrais associadas à linguagem seriam as favoritas do coronavírus? Por que ele afetaria menos outras habilidades?

“Há apenas hipóteses”, conta o professor Diogo Haddad. “Uma delas é que o cérebro é inteligente. Ele sabe que usamos a linguagem o tempo inteiro. Então, é como se, ao ser invadido pelo vírus, ele de alguma maneira o encaminhasse para o lugar onde o prejuízo seria menor a longo prazo, porque há mais redes neurais e, portanto, maior a chance de criar caminhos alternativos depois.”

A única certeza é que o cérebro tem uma plasticidade incrível. Tanto que ninguém pode garantir se, passado um tempo, as áreas que apareceram encolhidas no estudo britânico já não teriam voltado ao que eram, especialmente nos pacientes jovens. É uma questão de a gente confiar mais da nossa cabeça e lembrar que ela também pode ser ajudada.


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