Os avanços tecnológicos da bioengenharia e da genômica nos últimos anos possibilitaram uma verdadeira transformação na maneira como o câncer é tratado. O conhecimento mais profundo das características dos diferentes tumores foi a ponte para o desenvolvimento de terapias mais eficazes, seguras e com menos toxicidade¹. A leucemia, em especial seu subtipo leucemia linfocítica crônica (LLC), é uma das áreas que tem se beneficiado dessa evolução. Apesar de ser uma condição tratável, ainda enfrenta desafios principalmente no acesso às inovações na rede pública.
No Brasil, estima-se que mais de 11 mil novos casos de leucemia são identificados por ano, o que torna a doença o décimo tipo de câncer mais incidente no país, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Embora a leucemia seja um termo guarda-chuva, existem pelo menos 12 tipos específicos já mapeados e a LLC é a mais comum delas, representando cerca de 30% do total em adultos.
Um em cada três pacientes diagnosticados com a LLC vão necessitar de tratamento imediato, segundo explica, o médico hematologista André Abdo, gerente do Núcleo de Linfoma T do Centro de Linfoma e Mieloma do Hospital Alemão Oswaldo Cruz: “São aqueles que já apresentam sintomas, algo presente apenas quando a doença já apresenta um risco maior”. Dentre os sintomas estão plaquetas baixas, aumento dos gânglios, sintomas de anemia, febre vespertina, perda de peso maior que 10% em seis meses e sudorese noturna intensa. “Lembrando que o perfil tradicional da doença é a ausência de sintomas, mas quando há sintomas, essas são as manifestações mais comuns”, completa.
Tratamento de LLC avança, mas acesso ainda é desafio
Atualmente, não há nenhum protocolo com diretrizes terapêuticas para LLC no sistema público brasileiro e o tratamento é baseado nas recomendações de associações e sociedades de hematologia nacionais e internacionais. De acordo com um artigo publicado em 2016 na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, são recomendadas para a primeira linha de tratamento quimioterápicos alquilantes, quimioterápicos análogos de purina, imunoterapias e terapias-alvo.
É neste momento que pacientes do sistema público e da saúde suplementar começam a navegar em realidades completamente diferentes. Enquanto o rol da saúde suplementar já conta com terapias modernas, hoje, o único tratamento disponível via SUS é a quimioterapia.
A discrepância entre as opções disponíveis no SUS e na saúde suplementar se reflete no desfecho da doença. Uma análise retrospectiva feita pelo Grupo Brasileiro de LLC, publicada em 2022 na Revista Britânica de Hematologia, demonstrou que devido a inequidade de acesso, pacientes tratados pelo sistema público apresentam quase 3 vezes mais chances de óbito em sete anos do que os pacientes do setor privado. “Existe um verdadeiro abismo entre a saúde suplementar e o sistema público de saúde quando falamos no tratamento desses pacientes”, salienta o hematologista.
Para os pacientes refratários (que não respondem à primeira linha de tratamento) e recidivos (que voltam a ter a doença após o primeiro tratamento), o cenário é ainda mais desafiador. De acordo com um estudo publicado no Journal of Clinical Oncology, esses pacientes apresentam 58% mais hospitalização, 39% mais visitas à emergência e 42% mais consultas ambulatoriais. Ainda, os custos médicos totais quase dobraram quando comparados com aquele antes da recidiva ou da refração.
Acesso a opções terapêuticas contribuem para qualidade de vida
Para os recidivados ou refratários há a expectativa de incorporação de um novo medicamento da classe de inibidores BTK pelo SUS, já que 68% desses pacientes são inelegíveis ao tratamento com análogos de purina, principal método utilizado na rede pública. Aprovado pela Anvisa em 2019, a alternativa já está disponível na saúde suplementar.
Abdo destaca que a incorporação pode preencher uma lacuna: “Aqueles que precisam dessa segunda linha de tratamento muitas vezes são desassistidos, porque o sistema imunológico está muito comprometido para novas rodadas de quimioterapia, ou não seria uma terapia efetiva de fato. A incorporação de novas terapias como essa seria um salto gigantesco para essa população.”
A tecnologia está sendo avaliada para incorporação nos protocolos do SUS e técnicos, especialistas, profissionais de saúde, entidades da sociedade civil, pacientes e familiares podem contribuir na consulta pública aberta pela CONITEC até 29/04. A participação social é um fator-chave no processo.
Por isso, entidades da sociedade civil como a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia ( ABRALE ), que existe desde 2002, atuam não apenas para disseminar informação de qualidade sobre as doenças, mas também para incentivar o engajamento das pessoas.
A organização, inclusive, criou no fim de 2023 a campanha “Câncer do sangue também é câncer”, com apoio da Janssen Brasil e Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH). O objetivo é levar informação para a população sobre os cânceres hematológicos e a LLC por meio de diversas ações, destacando a importância da participação social e o funcionamento de consultas públicas.
Jornada do paciente de LLC
A leucemia linfocítica crônica é um tipo de câncer raro, que ocorre quando os linfócitos B, células responsáveis pela defesa do organismo, se reproduzem de maneira descontrolada por conta de um erro genético – e por isso têm a função comprometida. Ainda não há fatores de risco comprovadamente associados à condição, que afeta principalmente homens entre 65 e 74 anos. Ela costuma ser assintomática e um primeiro indício pode ser a contagem elevada de glóbulos brancos no sangue ao realizar um hemograma de rotina.
O segundo momento é de investigação, para confirmar o diagnóstico. Atualmente, isso é feito através de exames laboratoriais como mielograma (avaliação da porcentagem de linfócitos na medula óssea), biópsia de gânglio e imunofenotipagem – essa considerada fundamental para o diagnóstico. Todos estes exames são disponibilizados pelo SUS.
Com o resultado dos exames em mãos, o hematologista é capaz de realizar o diagnóstico e classificar os pacientes em risco baixo, moderado e alto. Diferente de outros tipos de câncer, uma vez identificada, é preciso entender o perfil do paciente para, então, avaliar a necessidade ou não do início do tratamento. Pelo perfil de evolução lenta, muitos dos diagnosticados são considerados de baixo risco e, por isso, não necessitam de tratamento. O protocolo para esses casos é “watch and wait” (observar e aguardar, em português), quando é feito o monitoramento e exames laboratoriais em intervalos estabelecidos pelo profissional para acompanhar a evolução da doença.
“Aproximadamente 30% dos pacientes diagnosticados vão precisar de tratamento em algum momento, mas essa necessidade pode demorar alguns anos para surgir, então é adotado o monitoramento”, explica Abdo.
Referências
1 – Advances in Leukemia Research. Nationtal Cancer Institute. Acesso em 15 de abril de 2024. Disponível em: https://www.cancer.gov/types/leukemia/research
Isabelle Manzini
Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.